A natureza vive à nossa revelia
A vida acaba cedo e cedo temos que reinventá-la. Cumpri as tarefas: casa, carro, apartamento, filha, neta, diplomas, paixões, do amor e da carne.
Perco forças.
Não tenho vícios.
Já redesenhei esta senhora que invade meu corpo com mil penteados, cortes de cabelo, roupas. Não acertei redefini-la. Se eu me distraio, a jovem que fui me assalta e coloca megahair com permanente.
Revivê-la. Pinçar todo dia uma coisa boa do passado e regá-la. Aproveitar as obras no apartamento e rearrumar o armário, guardando apenas o que não doa.
É muito mais fácil captar imagens que palavras. Imagens nos surpreendem, estão meio prontas. Minhas palavras me doem. As fotos hoje em dia são de praias, paisagens, beleza, a vida secreta dos insetos.
Em algum momento do caminho fui perdendo as cores, sou meu próprio plágio. Eu as recobro num click.
Quando Pablo quase gritou: Olha! Uma tartaruga! Não consegui ver sua cabeça de primeira, tivemos que esperar, na Praia do Forno, até que ela viesse à tona respirar novamente. Tentei fotografá-la, mas há coisas no mundo que é melhor guardar a câmera, abrir bem os olhos e ver. Foi quase uma epifania. A natureza nos surpreende e maravilha. Insetos multicoloridos com elaborados movimentos e artifícios de defesa incríveis. Quisera eu mudar de cor na mata, poder fingir de morta, ter olhos nas costas para despistar ou nas asas, como algumas borboletas. Despistaria. A perereca mora dentro da bromélia e podemos fotografá-la todos os finais de tarde, sempre à mesma hora, quando ela sai, segura, para fazer seu passeio, dar seus pulos e conquistar seu rango. O macho mora ao lado, uma vez ela deu cria. A lagarta carnavalesca, a formiga de óculos fundo-de-garrafa, os insetos sem nome, minúsculos monstros de antenas, mil patas e estranhos comportamentos, a cobra verde que dança, equilibrista, o rola-bosta, Sísifo na grama, tudo documentado.
A natureza vive à nossa revelia. E agora posso ter tudo isso no quintal, igreja a céu aberto onde vislumbro um deus secretíssimo que se revela exibindo mil espécies, de plantas, de bichos, de ventos, de marés, de nuvens deformadas, formigas em marcha, cigarras ensurdecedoras, pássaros customizados, bicos vermelhos, tufos coloridos na cabeça, nas asas, nas penas. Se esperarmos por eles vão chegar sempre à mesma hora. A natureza tem hábitos, rituais, procedimentos.
Como as formigas são organizadas. Fotografar gaivotas quando chega o barco de pesca em Geribá de manhã bem cedinho é sempre uma alegria. Como crianças, que repetem a mesma brincadeira e ouvem mil vezes a mesma história com renovada alegria, assim fotografo as gaivotas elegantes e desconfiadas. Como as gaivotas são desconfiadas. Belas esganiçadas, não se pode ter tudo.
Meus amigos não gostam de matar insetos. Escondido, dou umas pisadas. Aranhas, besouros, abelhas, grilos, formigas, lagartixas, tudo deve viver, menos mosquitos. Esses, matamos com raquetes elétricas. Ou Detefon, eu disse outro dia, e riram porque Detefon é coisa antiga, assim como ODD pra lavar louça, erace para tirar olheiras, rouge para colorir bochechas, creme rinse agora condicionadores. Assim, renomeando, o mundo se transforma para que os velhos não o reconheçam e sintam menos quando chegar a hora do morrimento.
Já tenho malas no carro, compras, cadeiras de praia, barraca, água potável, brinquedos para a Isadora, que vai conhecer a casa nova da vovó. Orgulhosa, levo mudas de plantas, baldinhos e pás de praia. Esse é o mundo, minha neta. Juntas, vamos plantá-lo. Pena que três anos são muito pouco para conservar essa lembrança. Tirarei fotos, garantia. Um dia ela saberá. Conhecerá as árvores e flores pelo nome, e também os pássaros e as praias de Búzios, as mais secretas, de cor, uma a uma, lembranças do tempo da vovó e das histórias do paraíso hippie. Pena que acabou o movimento.
Fotos: Pablo Manuel Menezes e Glória de Menezes Horta
Cobra criada em Búzios
A vida secreta dos insetos
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